Quase uma divindade

Conheça a trajetória sagrada do vinho

Abençoado por deuses, o vinho atravessa a história com um lugar de destaque em várias religiões

por Marcelo Copello

Em época de festas cristãs, lembramos da densa carga religiosa do vinho, acumulada através de sua longa e rica história. O nobre fermentado teve papel importante na evolução das tradições, valores intelectuais, morais e espirituais do homem. Não há religião sem culto, e toda liturgia necessita de gestos e de símbolos. A videira e o vinho estiveram presentes nos principais rituais, sagrados ou profanos, e em quase todas as celebrações, desde os primórdios da civilização. Dos deuses egípcios e greco-romanos ao extremo oriente; da Bíblia dos judeus e cristãos ao Islamismo; do protestantismo à Santa Inquisição; da Revolução Francesa à Lei Seca, o vinho sempre esteve em evidência quando o assunto foi religião. Mas como e por que este suco de uva fermentado se transformou em símbolo messiânico para alguns, em instrumento de Satã para outros, ou até, em alguns casos, em uma crença em si? Para entender a raiz deste fenômeno é preciso analisar o ciclo da videira, a elaboração do vinho e como eles eram vistos pelos antigos. A cada inverno as vinhas minguam, perdem suas folhas e aparentemente morrem, para renascer esplendorosamente na primavera, enquanto o vinho sobrevive a aparente morte da árvore que lhe deu origem. No Egito, este fato era reforçado pela cheia anual do Nilo, quando suas águas ficavam avermelhadas (como vinho), por causa do aluvião ferroso que corria por um de seus afluentes. Tais fatos tornaram a videira e o vinho símbolos da imortalidade e da ressurreição.

Outro aspecto é a fermentação. O mosto da uva passava por um processo totalmente desconhecido, só definido por Louis Pasteur no século XIX. A fermentação alcoólica é aparentemente violenta, exala calor e o líquido borbulha, como se estivesse possuído por algo de outro mundo. Para completar, o fator mais importante, tão inexplicável quanto surpreendente, era o efeito psicotrópico do fermentado. Esperava-se, no êxtase provocado pelo vinho, aproximar-se dos deuses.

O vinho é também o símbolo da revelação, da verdade. A embriaguez era considerada, ao mesmo tempo, um delírio inebriante que paradoxalmente trazia lucidez. Não por acaso, o dramaturgo grego Aristófanes disse: "Rápido! Tragam-me vinho para que eu umedeça a minha mente e diga algo inteligente". A máxima enófila in vino veritas (no vinho, a verdade), ilustra esta crença e a de que, ao beber do cálice de outra pessoa, descobrimos seus segredos, a verdade.

Outra conotação, mais mundana, assumida pelo vinho foi a fertilidade. Como afrodisíaco, relaxando as barreiras morais, a ligação entre vinho e sexo acabou tornando-se uma associação entre vinho e fertilidade. A mitologia egípcia conta, por exemplo, que a deusa Ísis teria engravidado simplesmente por ter comido uma uva. Em algumas civilizações da Antiguidade, moças, ao namorar, ofereciam ao futuro marido uma taça de vinho, considerando-se, a partir daí, firmemente comprometidas.

O deus romano do vinho, Baco, retratado por Caravaggio

Outras plantas têm ciclos semelhantes ao da videira, assim como outras bebidas provocam igual embriaguez. Não está claro o porquê do fermentado de uvas ter recebido maior status. Talvez por seu teor alcoólico, superior ao da cerveja e de outras bebidas da época, ou por suas qualidades como bebida, ou, ainda, por suas propriedades terapêuticas, já reconhecidas desde então.

O vinho tornou-se, assim, um dos principais símbolos de quase todas as religiões pagãs da era pré-cristã. Era o sangue da terra, o elixir da vida e a bebida da imortalidade. Foram erguidos templos, criadas festas e cunhadas moedas com imagens de uvas ou parras. Sacrifícios, libações e oferendas em vinho incorporaram-se à cultura. Algumas das principais divindades da Antiguidade eram deuses do vinho.

O cultivo da vinha era uma atividade sagrada. Muitos dos vinhateiros eram os próprios sacerdotes, que determinavam, todos os anos, o dia sagrado da colheita e o dia em que se poderia beber o vinho novo. Juramentos feitos com uma taça na mão tinham caráter divino. Bebia-se vinho à saúde dos amigos ou ao êxito nos combates. Ao sorver a bebida sagrada com um inimigo, ele se tornava inatacável. Na China antiga, o vinho era usado como remédio, assim como em rituais de sacrifício durante as dinastias Chang e Chou, cerca de 1100 anos a.C. Os chineses conheciam o fermentado da uva antes do saquê. No taoísmo, o elixir da imortalidade levava, entre outras coisas, ouro e vinho. Escritos ancestrais da Índia, de 2000 a.C., mencionam que o vinho era louvado como deus e remédio.

A primeira civilização de grandes vinicultores foi, contudo, a egípcia. Há 6 mil anos este povo já considerava divino o fermentado, uma dádiva de Osíris, deus da vida, da morte e do vinho.

Destinada a reis e sacerdotes, esta bebida era derramada sobre os altares dos deuses, como um sangue purificador. São inúmeras as referências ao vinho gravadas nos muros dos palácios, túmulos e pirâmides. Os egípcios lhe atribuíam tanto valor que os melhores exemplares iam para a tumba junto com seus proprietários, que tinham seus cadáveres lavados com o precioso líquido antes do sepultamento. Muitas jarras foram descobertas nos porões de palácios reais e em tumbas. O faraó Tutancâmon foi enterrado com 36 vasos cheios do néctar sagrado, que deveriam acompanhá-lo em sua viagem espiritual ao paraíso.

No Egito e em muitas sociedades o vinho era uma bebida de luxo, símbolo de status. Mesmo em povos onde a abundância da bebida permitia um consumo mais democrático, a distinção de classes era definida pela qualidade do vinho e a ocasião em que era bebido.

Na Idade Média a Igreja financiou a viticultura

Os egípcios teriam levado, por volta de 2000 a.C, o cultivo da vinha para a Grécia, que de lá teria chegado à bota romana. Tal fato é referido na lenda de Dionísio, deus grego do vinho e da fertilidade, que em Roma foi chamado de Baco.

Dionísio era filho da deidade máxima, Zeus, e da mortal Sêmele. Zeus foi induzido a fulminar Sêmele com um raio quando ela ainda estava grávida de Dionísio, mas decidiu salvar o filho, implantando-o em sua própria coxa. Assim que nasceu, Dionísio foi exilado na Índia, onde cresceu educado pelas musas, deusas das ciências e das artes. Ao atingir a idade adulta, Dionísio retornou à Grécia, percorrendo a Pérsia, a Arábia e, finalmente, o Egito, onde teria aprendido vinicultura. Em seu trajeto, ensinava a todos a arte de cultivar a vinha e fazer o vinho.

Na Grécia, o vinho era encarado não apenas como religião, mas também como filosofia, arte e ciência. O vinho foi estudado, louvado e cantado por todos os cientistas, filósofos e poetas da época, como Hipócrates, Platão, Homero, Plínio e Eurípedes.

A atitude grega perante o vinho pode ser expressa em uma única palavra: entusiasmo, etimologicamente originada do vocábulo grego enthousiasmós (transporte divino), que designava a embriaguez ritual.

Para os gregos e outros povos da Antigüidade, o vinho proporcionava libertação, a embriaguez podia ser sagrada. Para os judeus, o vinho é uma dádiva, mas a ebriedade, um perigo. A Bíblia se refere ao vinho desde suas primeiras páginas e o cita, no total, cerca de 450 vezes. O Velho Testamento mostra a bebida sagrada como dádiva intelectual e espiritual, associando-a à sabedoria divina. Segundo a Bíblia, Noé inventou o vinho. Ao chegar ao monte Ararat, a primeira coisa que fez foi plantar a videira, fazer vinho e embriagar-se em proporções bíblicas. O livro sagrado, porém, desculpa o porre de Noé, que conquistou este direito depois de ver tanta água. Metaforicamente, podemos ver o dilúvio como o triunfo da água purificadora. Noé foi o grande vingador dos enófilos, redimindo a terra e seus frutos, transmutando simbolicamente a água em vinho, a razão em emoção.

O Novo Testamento é igualmente abundante em referências à vinha e ao vinho. Foi com o vinho que Jesus fez seu primeiro milagre, nas bodas de Canaã, onde o vinho subitamente acabou. Jesus mandou, então, encher potes com água e transformou-a em vinho. Sobre este episódio, Richard Crashaw, poeta religioso inglês, escreveu: "a água ao ver Cristo ficou envergonhada e corou".

A videira, as uvas e a vindima constituíram imagens que permitiram ilustrar, de uma maneira mais próxima da realidade dos fiéis, os ritos sacramentais e os pontos fundamentais da doutrina cristã. Jesus Cristo é representado pelo cacho de uvas, cujo esmagamento constitui um sacrifício voluntário, e cujo sumo é seu sangue. Jesus tinha elevado, deste modo, a nossa natureza, fraca como a água, até ele, tornando-nos participantes da natureza divina.

Para o neozelandês Rod Phillips, em seu livro Uma Breve História do Vinho, "havia muitas semelhanças entre as representações de Jesus e Baco. Ambos são filhos de um deus com uma mulher mortal. Na época de Jesus, Baco tornou-se uma figura salvadora, com poderes de assegurar a vida após a morte. O milagre da transformação de água em vinho faz lembrar uma situação característica de Baco. Para os gregos, beber vinho era beber deus - uma crença que se manteve na eucaristia cristã".

Jesus, que descreve a si mesmo como "Vitis Vera" (videira verdadeira) e seus discípulos como ramos, em sua última ceia, ao passar o cálice, escolheu o vinho como símbolo de seu sangue, tornando-o inerente aos ritos cristãos.

A teologia católica, por exemplo, exige explicitamente que no sacramento seja utilizado o vinho. Em 585 d.C., o Concílio de Auxerre proibiu o uso do vinho temperado com mel ou de qualquer outra bebida que não fosse vinho autêntico, como cerveja ou fermentados de outras frutas como a sidra, feita de maçã. Deveria ser usado o "vinum de vite" (vinho da vinha).

Através da História, a cultura da vinha se desenvolveu, em grande parte, em conjunto com a disseminação do Cristianismo, inicialmente com propósitos religiosos e mais tarde para satisfazer prazeres seculares. Não por acaso, os maiores produtores de vinho de hoje são países de longa tradição cristã (Itália, França, Espanha etc).

Em várias civilizações, o vinho também já foi uma bebida de atitude. O consumo do fermentado separou os pagãos dos devotos em muitas culturas. Para gregos e romanos, os bárbaros bebiam cerveja, enquanto pessoas civilizadas bebiam o néctar sagrado.

Na Idade Média, a Igreja Católica tornou-se importante financiadora da vinicultura. Os mosteiros eram importantes centros de produção, não apenas para consumo próprio, pois a Igreja descobriu que o vinho era também um ótimo negócio. Muitos religiosos (bispos e até papas) eram proprietários - pessoalmente e não como representantes da igreja - de vinícolas.

Os monges da Abadia de Cîteaux, chamados de cistercienses, foram talvez os melhores enólogos da Idade Média. Fundada na Borgonha no século XI, esta ordem religiosa expandiu-se pelo resto da França e por quase toda a Europa, disseminando tecnologia vinícola. Alguns de seus domínios viriam a conquistar reputada fama, como Beaune, Pommard, Vosne, Nuits, Corton, Clos de Vougeot. Várias ordens religiosas associaram-se a grandes vinhos, como os monges de Bèze, que produziam o Chambertin, vinho favorito de Napoleã; e os beneditinos da Abadia de Hautvillers que, liderados por Dom Pérignon, produziram o Champagne.

O vinho também teve papel relevante nos conflitos que levaram ao Cisma, culminando na transferência da sede da Igreja de Roma para Avignon, no sul da França, de 1309 a 1378. Oito papas reinaram em Avignon e foram conhecidos como "Papas do vinho". O primeiro deles foi Clemente V, fundador em Bordeaux de um vinhedo que leva seu nome, o Château Pape Clement. João XXII, que o sucedeu, fundou o Châteauneuf-du-Pape, literalmente, "castelo novo do papa", sua residência de verão, cujos vinhedos se tornaram hoje a AOC (Appellation d'Origine Contrôlée) mais notória das Côtes du Rhône Meridionales. Em 1364, Urbano V, outro dos Papas do vinho, promulgou um edito proibindo que a Abadia de Cîteaux enviasse vinho a Roma sob pena de excomunhão. O poeta italiano Petrarca conta que, no fim do Cisma, os cardeais não queriam deixar a França, pois em Roma não havia o vinho de Beaune.

A Santa Inquisição também teve o vinho no topo de sua pauta. Perseguiu, de 1184 a 1820, por heresia, aqueles que fizeram a apologia da abstinência de vinho.

Diametralmente oposta está a atitude do Islamismo. Maomé (570 - 632 d.C.) e seus seguidores mostraram que nenhuma religião foi indiferente ao nobre fermentado. O Islã tentou erradicar, como uma doença, o vinho de todos os territórios que conquistou. O Alcorão faz várias referências ao vinho. Este livro sagrado admite as benesses do fermentado, mas fala que seus males superam suas qualidades. Promete que no paraíso haverá fartura de vinho e de mulheres, mas até lá, bico seco, pois "Satã tenta semear a inimizade e o ódio por intermédio do vinho e do jogo".

O Islamismo viu florescer, a partir do século VIII, uma escola de poesia romântica amotinada embebida em vinho. O maior expoente deste movimento foi o persa do século XI, Omar Kháyyám, cuja obra Rubáiyát é uma ode entusiasmada ao nobre fermentado e ao amor.

O protestantismo limitou, mas não baniu, o uso do vinho. Martinho Lutero (1483-1546) modificou o caráter simbólico da liturgia, mas não o combateu fundamentalmente. Ele via na comunhão algo meramente alegórico, representando a morte de Cristo, mas negando a transformação dos elementos da Eucaristia. Lutero via na pureza do vinho uma metáfora da virtude da doutrina evangélica. João Calvino (1509-1564) recomendava-o como alimento e remédio, jamais como prazer. No calvinismo, pão e vinho são apenas sinais da presença, embora não física, de Cristo.

A tônica destas religiões era coibir os excessos e não propriamente degredar o vinho. A Reforma não chegou a ter grandes conseqüências sobre o consumo do vinho, pois conquistou mais fiéis em países que não eram grandes produtores, como Inglaterra, Escócia, Escandinávia, Holanda, norte da Alemanha e Suíça.

A Revolução Francesa também se preocupou com o vinho, afinal ele era um dos maiores patrimônios do país da liberdade-igualdade-fraternidade, e os meios de sua produção pertenciam, em grande parte, à Igreja. A Borgonha foi a região mais afetada, quase todos os seus vinhedos eram eclesiásticos. As propriedades foram expropriadas e leiloadas, o que explica a atual fragmentação da região, fenômeno conhecido como "mosaico borgonhês".

Em 1820, foi provada a existência de álcool no vinho. Até então acreditava-se que os fermentados continham elementos do álcool, mas não o álcool em si, que estaria presente apenas nas bebidas destiladas. Esta descoberta, aliada ao reconhecimento, em 1849, do alcoolismo como doença, fez parte de um processo que culminou na Lei Seca dos Estados Unidos, assinada em 1920. O vinho e a Igreja protagonizaram vários capítulos da alcoolofobia, que se instalou no território norte-americano. Proibicionistas chegaram ao cúmulo de manipular a Bíblia. Professores da universidade de Yale e a YMCA (Young Men Christian Association) publicaram uma versão do livro sagrado onde todas as ocorrências da palavra "vinho" foram substituídas pela palavra "uva". No mínimo, um pecado.

Ao longo do século XX , o consumo do vinho caiu nos tradicionais países produtores. A "religião", que podemos chamar de "vida moderna e saudável", onde a santa trindade é o stress, a pressa e as dietas de laboratório, reduziu o espaço do vinho em nossas vidas.

Desde as últimas décadas, no entanto, o nobre fermentado vem reconquistando seu pódio. A melhoria geral, de qualidade a preço acessível, o reconhecimento de seus benefícios à saúde e a adoção do vinho como bebida da classe média de diversos países do Novo Mundo, são os principais motivos.

Hoje podemos dizer que em alguns meios de aficionados, que não são poucos, o vinho voltou a ser (quase) uma religião em si. Quantas pessoas não conhecemos que viajam em "peregrinação" a regiões vinícolas? Algumas se portam em adegas como se estivessem em santuários. Outras parecem atingir o nirvana ao degustar. Há os que pronunciam os nomes dos melhores Chateaux baixinho, com a sacralidade de uma prece...

Relatado por Goethe, um sermão de um bispo de Mainz (Alemanha) merece louvor: "Que aquele que ao terceiro cálice, sente turvar-se a razão, se fique pelos dois cálices, se não quer ofender a Deus e ser desprezado pelo próximo; mas aquele que, depois de ter bebido cinco ou seis cálices, fica em estado de fazer o seu trabalho e obedecer às ordens de seus superiores eclesiásticos e seculares, que esse absorva humildemente e com reconhecimento a parte que Deus lhe permitiu tomar. Que cuide bem, todavia, de não passar o limite de seis medidas, pois é raro que a bondade infinita do Senhor conceda a um dos seus filhos o favor que em boa hora concedeu a mim, seu servo indigno. Bebo oito cálices de vinho por dia e nenhum de vós poderá dizer que alguma vez me viu entregue a injusta cólera, injuriar meus pais ou meus conhecidos... Que cada um de vós, meus irmãos, fortifique, pois, o corpo e rejubile o espírito com a quantidade de vinho que a bondade divina lhe permitiu absorver". Amém.

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