Malbec ou Cabernet?

Cheval des Andes: Entrevista com o diretor técnico Gerald Gabillet

Gerald Gabillet, diretor técnico de Cheval des Andes, revela os segredos da construção desse ícone argentino baseado na filosofia bordalesa

Gérald Gabillet, diretor técnico de Cheval des Andes - Divulgação
Gérald Gabillet, diretor técnico de Cheval des Andes - Divulgação

por Eduardo Milan

Antes de chegar à Argentina, um terroir ao qual não estava acostumado, Gerald Gabillet tinha baseado toda a sua formação e carreira em Bordeaux. Formou-se na universidade de enologia da cidade francesa e “dediquei-me ao mundo dos Grand Cru bordaleses”, com experiências nos Châteaux Destieux e Beauregard e também em Angelus, por exemplo. Em 2018, todavia, em conversas com a equipe do Château Cheval Blanc, recebeu uma proposta que mudaria completamente sua trajetória profissional.

Foi assim que ele chegou à Argentina para ajudar a conduzir (ou seria reposicionar o melhor termo aqui?) o projeto de Cheval des Andes, criado por Pierre Lurton com ajuda de Roberto de la Mota em 1999, uma parceria entre o Château Cheval Blanc, de Saint-Émilion, e a Terrazas de Los Andes, de Mendoza, ambas do grupo Moët. E, em pouco tempo, percebe-se que este ícone argentino realmente tomou novos rumos para se solidificar como o seu mote mesmo prenuncia: um Grand Cru dos Andes.

O trabalho de Gabillet como diretor técnico vem sendo notado nas últimas safras de Cheval des Andes, como a vertical de que a Revista ADEGA participou comprova. Aliás, foi durante essa recente visita ao Brasil, que tivemos a oportunidade de conversar com o enólogo e ouvir suas opiniões a respeito desse grande vinho, fruto do terroir argentino com sabedoria bordalesa. Confira a seguir. Se perefir, escute essa conversa com Gerald Gabillet no podcast da Revista ADEGA.

Revista ADEGA: Desde a criação em 1999, Cheval des Andes passou por algumas etapas. Poderia falar sobre esse desenvolvimento?
Gerald Gabillet:Desde 1999, tem-se um desenvolvimento bastante rápido. Os dois homens-chave, Pierre e Roberto, queriam o melhor para Cheval des Andes e, acima de tudo, tinham definido o projeto para respeitar a noção de Cru. Em seguida, queriam fazer vinhos com uvas próprias e escolheram duas fazendas. Uma em Las Compuertas, Luján de Cuyo, um dos vinhedos mais antigos de Mendoza. É uma área famosa pelo Malbec de pé franco do final dos anos 1920, um patrimônio. Eles também viram que havia potencial para Cabernet Sauvignon. Há solos muito profundos e era um terroir interessante para Cabernet. Vinte anos depois, percebemos que eles não estavam errados, era mesmo um lugar excepcional para Cabernet. São 32 hectares em Las Compuertas e há outra fazenda que poucas pessoas sabem. Temos 15 hectares em Altamira desde o início do projeto. E é muito importante para nós, porque é um clima um pouco mais frio, que nos interessa muito para os objetivos de frescor do vinho. Cada área tem um interesse, a generosidade do Malbec de Las Compuertas; e um Malbec com um perfil mais floral, com mais frutas vermelhas em Altamira. Quando misturados, é uma coisa fantástica. E este Cabernet Sauvignon que vem como base estrutural do vinho, a base da elegância. E tinha-se muito claro que era para fazer um corte de Malbec e Cabernet para levar o vinho a uma certa altura, ter uma qualidade superior. Assim, os primeiros cortes foram quase 60% Cabernet e 40% Malbec, que é um pouco louco para Mendoza, porque a variedade reinante aqui é Malbec. E Pierre e Roberto não estavam errados, porque percebemos agora, com a história, que Cabernet é uma variedade fantástica.

Mas houve momentos-chave no percurso?
Certamente em 2006, com a saída de Roberto de la Mota de Terrazas para seu projeto pessoal, e de Pierre em 2005, quando os proprietários do grupo lhe pediram para assumir o comando do Chateau d'Yquem. Nesse momento, naturalmente, Terrazas de Los Andes assumiu a liderança do projeto. E, no final, perdeu-se um pouco a filosofia e a ideia inicial de respeitar a noção de Cru. Cheval des Andes foi completamente absorvido por Terrrazas. E as pessoas até pensaram que Cheval era uma cuvée de Terrrazas. Em 2011, quando Pierre percebeu isso, pediu à equipe técnica no Château Cheval Blanc para ver o que estava acontecendo e eles disseram: ‘Parem, temos que voltar ao projeto inicial”. Pouco a pouco, precisavam se envolver mais, para entender o que é Mendoza, porque, para um técnico de Bordeaux, aqui é outro mundo. Em Bordeaux, estamos ao nível do mar, chove mais de 900 ml por ano, certo? Em Mendoza, somos um deserto, mais de mil metros de altitude. Então o paralelo é diferente. 

Quais mudanças ocorreram nessa fase?
Ao nível da viticultura, que é fundamental, duas coisas. Primeiro, diminuir o vigor da planta para ter o melhor equilíbrio possível. A ideia não é produzir muitas uvas, mas partir de uma uva adaptada e fazer um grande vinho. Assim, limitamos os rendimentos e vemos a estrutura do equilíbrio da planta, se ela pode ou não produzir com o propósito de fazer uvas para um vinho tinto icônico. E o segundo ponto, que está intimamente ligada a isso, é a irrigação. A questão da água é fundamental. A média por ano é de 200 a 250 ml, mas uma videira, com objetivo de fazer uva para um grande vinho, precisa entre 500 e 600 ml. Então temos que adicionar água em algum momento. Não temos poços e quando há pouca neve na montanha, a vinha terá pouca água e assim temos um impacto em todo o ciclo fisiológico; e isso obviamente terá impacto na qualidade. Fizemos muitos investimentos nos últimos anos para ter acesso à água. Algumas barragens artificiais nos permitiram capitalizar a água quando a vinha não precisa dela. Temos turnos de água que a administração local nos dá acesso, então não a perdemos, capitalizamos. E, por outro lado, usamos irrigação por gotejamento, porque a irrigação tradicional de Mendoza é inundação. Nela, não sabemos exatamente quanta água a planta absorve.

Como lidam com o estresse hídrico?
Em 2015, a equipe contratou um especialista em estresse hídrico que tem muita experiência em Napa. Ele ajudou-nos, acima de tudo, a compreender como lidar com a noção de estresse para a Cabernet. Porque, no final, queríamos acabar com a caricatura do Cabernet argentino repleto de pirazina etc. Isso é apenas uma questão de estresse hídrico, pois, regar no momento certo evita guardar essas pirazinas que devem queimar, pois é uma molécula que queima. Quando a planta é bloqueada por um problema de estresse hídrico, essas pirazinas não são queimadas. Você tem que entender como lidar com isso e aprendemos. Acho que agora, com tudo que está provado, você pode fazer um grande Cabernet na Argentina.

Por isso também plantaram um pouco de Cabernet em Altamira em 2018?
Estamos muito interessados em ter, como um chef na sua cozinha, uma paleta de ingredientes que nos permita dar mais complexidade ao nosso corte final. Ter um perfil de Cabernet Sauvignon de Altamira é mais um ingrediente. E sim, ele completará a base do nosso Cabernet Sauvignon.

É uma vinha jovem, já vai ser usada?
Em 2022, a primeira colheita foi diretamente integrada ao vinho. Muitas pessoas falam que você tem que esperar 10, 15, 20 anos por uma uva para o corte de um grande vinho. Agora temos conhecimento e dados suficientes, que nos ajudam muito a interpretar, a compreender, a escolher o material, o mais adaptado ao terroir.

São dois perfis de Malbec e de Cabernet que vão para o corte, portanto?
O Cabernet Sauvignon contribui para a matriz do nosso vinho. O Malbec é um pouco como o Merlot em Bordeaux, é onde está a gordura que pode ajudar a dar mais acessibilidade em sua juventude. Há uma parte dos consumidores que querem isso, que não querem esperar por um Cabernet Sauvignon por 10 anos. E agora, acima de tudo, estamos procurando um perfil de Malbec que saia da caricatura do histórico, de um vinho pesado, açucarado. Observamos cada vez mais, principalmente em Altamira, que, com um clima mais frio, o Malbec fica bem próximo do Pinot, com menos cor, mais redução. E amamos isso porque descobrimos outro perfil de Malbec, que vai muito bem com o que estamos fazendo.

Qual a chave do blend?
A identidade que definimos está em três pontos-chave: o frescor, uma das bases, a elegância e o potencial de guarda. Estamos completamente alinhados com essa identidade, essa filosofia global. E então, é claro, vamos brincar com o corte dependendo das condições do ano. Com isso, não perdemos identidade, mas faremos vinhos diferentes a cada ano. No final, fazemos um vinho de corte, que é a nossa cultura. Contudo, não é para fazer um bordalês, é para fazer vinho argentino, mas com uma visão e filosofia importadas. Estamos trazendo um modelo de Bordeaux e aplicando em Mendoza. No final, fazemos um paralelo entre Malbec e Merlot; e Cabernet Sauvignon e Cabernet Franc. Olhando para o equilíbrio que demos e pensamos que o mais adaptado para os objetivos de qualidade de Cheval des Andes – e também a identidade que queremos dar – é a proporção de 50/50 desses últimos anos. Para nós, esse é o equilíbrio ideal de Cheval. E desde 2016 todas as uvas são 100% nossas.

Em termos enológicos, o que mudou nos últimos anos?
Trabalhamos mais na redução, pois isso capitaliza melhor os aromas do vinho, que não é liberado diretamente nos primeiros anos e depois passa rapidamente para a paleta aromática terciária. Isso captura o máximo de aromas frescos e frutados, florais. Tudo isso é a chave para um grande vinho. Depois, freamos um pouco a evolução, trabalhando um pouco menos na oxigenação. E, em seguida, trabalhamos muito na melhor integração possível da madeira. Trabalhamos com barricas de 225 litros, de 400 litros e foudres de 2500 litros. Isso é bastante interessante, porque brincamos com a questão da redução. Quando se está em um foudre, você tem mais redução do que um barril de 225. E também a integração da madeira, a libertação de gordura, que para nós participa da construção do vinho para o potencial de guarda. Ou seja, não se perde o interesse do carvalho dentro dos vinhos, mas não vamos desequilibrar, porque houve um momento em que Cheval des Andes foi um pouco mais intervencionista nesse sentido. Agora está muito mais claro para onde queremos ir. Ou seja, a pessoa se permitiu dizer: ‘Não, a direção não é essa. Esta é a nossa visão, não podemos fazer um vinho ao contrário do que estamos fazendo na França’. A ligação com o Château Cheval Blanc está aí naturalmente, pois eles deram uma parte de seu nome a este produto. É importante não fazer um Cheval Blanc na Argentina, mas expressar essa visão. É isso que estamos tentando fazer em Cheval des Andes. E é importante.

Nesse período na Argentina, como vê a viticultura do país?
A viticultura argentina está em um de seus melhores momentos. Há muitos projetos, enólogos e viticultores que agora estão criando vinhos muito interessantes e qualitativos; e isso permite que você pare com a imagem de Malbec barato. A Argentina precisava um pouco desse renascimento que está a caminho. É o momento da Argentina, porque a competição mundial é muito dura.

Qual sua visão em relação ao Malbec e ao Cabernet argentino?
A história da Argentina não foi apenas do Malbec no início. Malbec e Cabernet foram plantados no século XIX de uma forma importante. E esquecemos que este material vegetal tem mais de 150 anos de idade. É um material que foi adaptado para Mendoza. Não é um clone que vem hoje do Médoc e tem que funcionar. Portanto, há muita seleção massal que funciona bem. Também tentamos outros clones que sabemos que funcionam, mas a base do nosso Cabernet hoje é uma seleção histórica. O Malbec, por ser uma variedade mais fácil de lidar com essas condições extremas de Mendoza, fixou-se um pouco na imagem dos vinhos argentinos. Mas esquecemos que Cabernet Sauvignon, se bem vinificada, valorizada, é uma uva excepcional e temos muitos exemplos em qualquer lugar do mundo. Há grandes Cabernet no Napa, no Médoc, na Itália, na Espanha, na Austrália e, por que não na Argentina? Quando o Cabernet encontra seu lugar e o ser humano entende como valorizá-lo, coisas extraordinárias são feitas. É por isso que colocamos mais e mais em nosso corte, porque é a variedade que vai levar a um nível mais alto. Com maior proporção de Malbec, você vai ter um vinho untuoso, acessível, aberto, expressivo. Mas a questão que tenho observado é que, depois de cinco ou seis anos, quando o Malbec perde sua gordura, não fica muito interessante. No entanto, há exceções.

Confira as avaliações da Revista ADEGA para as safra de Cheval des Andes:

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